sexta-feira, 8 de maio de 2020

Não sei nada das coisas
Que vejo nas avenidas
A vida a vida a vida
Perdeu-se nos postes
Na cola dos postes
A gosma cósmica sem forma
A nos prender à vida
Nos carros e canos, sarjetas e trilhos
Nas noites nos caos nos brilhos
Na minha alma inquieta de mendigo
Busco o escondido nas janelas
O maldito o obscuro
Os lábios rispados a palavra dura
A dose de aguardente
O cuspe o palavrão o fedor
A noite em mim
Espera dormir um dia
Aos pés do altar santificado
E calmo,
No escuro fundo da igreja
De onde não se podem ver os sacrifícios.
18/10/2013

À porta de casa

Fechei a porta de ferro pela última vez.

Caminhei para a rua, o futuro soprou nas flores amarelas do ipê

E em mim a voz incansável sussurrou

Gauche, gauche, gauche na vida...

Tomei sua mão solitária e conduzi-nos em frente...

Temos em nossas costas uma bagagem mágica

Que nas ladeiras abaixo é leve e flutua

Mas nas íngremes esteiras pesa cheia de lembranças

É preciso varrer os quintais

Mesmo que o Outono sempre chegue para espalhar as folhas de novo...

É preciso seguir pelas calçadas malcuidadas da cidade

Desviar dos buracos, manter firmes os pés

Virar a chave e trancar no quintal as tentativas vãs

Do lado de dentro da porta, aquilo que em vão tentaremos superar

Do outro lado, a torre de cubos que infantis insistimos em reconstruir.

Poema para Gabi

Se eu pudesse escolher,
Não te chamaria Gabi
Te chamaria espera
Porque de paciência e noites você foi formada.

Não te chamaria Gabi,
Mas te chamaria comparecida
Porque viestes completar espaços, passos e ermidas

Se eu pudesse escolher,
Te chamaria nexo, pedido, graça ou perdão.
Te chamaria silêncio, sentido, saudade

De tantos nomes no batismo eu chamaria
Esse leve ressonar do peito seu
Que, em vão meu seio – velho veio, seco, duro
Cansado de buscar o que perdeu -
Enfim desistiria
De entender
esse mistério

E aceitaria Gabi
Gabi, assim, te chamaria
Para vê-la sorrir, ausente dos meus medos
E feliz.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Se solitário distancio-me
Além das sombras
Além dos desejos
E deito meu cansaço
No tênue balanço de rede
Dos disfarces
É que meu rosto reflete-se na nevoa
Úmida da janela
Do trem
- O último trem, vazio, noturno e preciso
- Na madrugada espanhola das desertas estações –
Minha memória ainda busca o sentido
Do reflexo da luz efêmera
No infinito campo de girassóis
Do norte de La Coruña.

Um dia Paris virá e será verão.
E vou sentar-me contigo para observar o sol
A se pôr atrasado, prolongando o dia,
Desprovido de pressa e de sentido –
Sim, a vida sem pressa e sem sentido –
Apenas o café
E os árabes conversando no café
E a hora do último metrô
Para Porte de Vincenes.
Um dia Paris virá
E será verão
E nossa vida fará sentido
Porque sua mão estará deitada,
Sem pressa,
Sobre a minha.
E não teremos nada para fazer
Depois do último metrô para Porte de Vincenes
Senão vagar pelas estreitas
- tão estreitas, estreitinhas,
Ao mesmo tempo tão minhas,
ao mesmo tempo de ninguém –
vielas do centro de Paris
Como fantasmas, margear o Siena,
Ouvir os sinos de Notre Dame
E desaparecer...
Ou dormir
Ou sonhar com os solares campos da Espanha
Sonhar que Paris virá
E será verão
E sobre a minha irás deitar
Suavemente sua mão.
Houve um tempo
Em que minhas possibilidades
Não incluíam a outra margem.
E a vida era mais simples sob o domínio de apenas um
Dos lados do espelho.
Todavia, há no meu olhar de hoje
Uma trilha vácua
Um pequeno vagalume a espreitar folhas nevoadas
Um cantar longínquo de um pássaro não identificado
A indicar que em algum momento
Vou encontrar as barrancas de terra vermelha
Erodidas pelo dente frio da água montanhesa
E terei que molhar meus pés sobre os seixos
E caminhar até a outra margem
De onde sequer poderei lembrar dos que adormeceram
- dos que docemente adormeceram –
Assim que limpei dos cabelos a nuvem matinal da garoa.
Espero o trem pra Taquaritinga
Então o tal trem pra Taquaritinga
Chegado atrasado infiel
Passará de noite com a sombra da noite
E eu perderei o trem
E eu perderei a noite
Perderei Taquaritinga
Fantasma da minha mãe
Ilusão de afeto
Não sou mais filho
Não és mais teto
Tudo passa e tudo agora
Ao mesmo tempo está
E partiu.
O trem pra Taquaritinga é um rio
E o meu coração é apenas  reflexo
Nas águas do rio de Taquaritinga
É certo que nunca existiu
Nem rio
Nem coração
Nem Taquaritinga.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Vazio

O vazio em mim
não é vazio.
Ele dói e é vero.
O vazio em mim
não é um
é zero.